Você provavelmente
já ouviu alguns desses comentários: pessoas bilíngues são raras e têm igual e
perfeito domínio sobre as línguas que conhecem; bilíngues de verdade são
aqueles que aprenderam as línguas quando criança e as falam sem sotaque;
bilíngues são tradutores natos; alternar entre duas ou mais línguas numa mesma
conversa é sinal de preguiça; todos os bilíngues são bi-culturais; o
bilinguismo vai atrasar ou causar efeitos negativos no desenvolvimento de uma
criança.
Esses são alguns
mitos que o professor emérito François Grosjean desmitifica em seu livro Bilingual: Life and Reality (Harvard
University Press, 2010). Como um especialista no assunto ele já percorreu a
Universidade de Paris, Universidade de Northeastern (Boston), MIT e ultimamente
leciona e pesquisa na Universidade de Neuchâtel, Suíça.
Grosjean chama
a atenção de que muitas vezes não nos damos conta de que o bilinguismo é um
fenômeno muito comum e está presente na maioria dos países do mundo,
percorrendo todas as idades e todos os
grupos sociais. Atualmente, estima-se que metade da população mundial é
bilíngue. Tomemos como exemplo o Brasil: calcula-se que existem em torno de 180
línguas utilizadas no país, a grande maioria línguas indígenas, mas esse número
também refere-se a imigrantes e descendentes de imigrantes que utilizam sua língua
cotidianamente em sua comunidade. Exemplo disso é o pomerano, um dialeto alemão
utilizado em Pomerode, um município de Santa Catarina.
Para
elucidar algumas questões, o professor explica que muitas vezes as pessoas
consideram o bilinguismo a partir da questão da fluência que o sujeito tem de
uma língua, enquanto que atualmente se pensa esse conceito relacionando-o ao
uso:
O alcance de quem pode ser considerado
bilíngue aumenta consideravelmente quando nos concentramos no uso da língua. Num
extremo concebemos bilíngue o trabalhador imigrante que pode falar com alguma dificuldade
a língua do país em que vive. E no outro extremo, temos o profissional
intérprete que é fluente em duas línguas. Entre esses extremos encontramos
cientistas que leem e escrevem artigos numa segunda língua mas que raramente a
falam, a mulher do imigrante que interage com suas amigas em sua primeira
língua, o membro de uma minoria linguística que utiliza sua primeira língua
apenas em casa e a língua da sociedade em que vive para todos os outros
domínios, a pessoa surda que utiliza a linguagem de sinais com seus amigos mas
que utiliza outra língua (geralmente na forma escrita) com uma pessoa que ouve,
e assim continua. Para além da grande diversidade entre essas pessoas, todas
elas têm algo em comum: elas conduzem suas vidas em duas ou mais línguas.
(François Grosjean, tradução minha)
Em
suas discussões Grosjean aborda a angústia de famílias que querem criar seus
filhos como bilíngues. Segundo ele, o que é relevante para a manutenção de uma
língua é atentar para questões como a quantidade de exposição às línguas que
queremos transmitir e manter, a necessidade do uso delas e a natureza dos
recursos que utilizamos para a transmissão e manutenção.
É a
necessidade de interação com as pessoas no cotidiano (falar, brincar, cantar,
ouvir, ler) e não a imposição dos pais que determinará o desenvolvimento de uma
língua. Grosjean aconselha criar situações em que os interlocutores das crianças
não conheçam a outra língua. Pensemos como exemplo os pais que vivem nos EUA e
estão preocupados com a manutenção do português, eles podem aproveitar as
viagens ao Brasil, a visita de parentes, as conversas por telefone ou por skype com brasileiros para expor as
crianças a situações monolíngues, isto é, em que elas necessitem procurar
recursos para se expressar em português sem fazer empréstimos do inglês. No
cotidiano de uma pessoa bilíngue os empréstimos são comuns, mas será vantajoso
criar circunstâncias em que as crianças em que atuem como monolíngues.
Para os filhos adolescentes,
Grosjean incentiva que os pais abordem o tema bilinguismo acatando as angústias
e buscando esclarecer as situações vividas. Afinal, em grande parte dos EUA o
bilinguismo é um fenômeno vivido cotidianamente, às vezes de forma conflituosa,
outras, em que as riquezas dos intercâmbios culturais são valorizados e
aproveitados.